Ives Gandra Filho: ‘Penso ser necessário se discutir uma reforma trabalhista 2’

Ives Gandra Filho: ‘Penso ser necessário se discutir uma reforma trabalhista 2’

O céu era de brigadeiro e ventava fresco em Brasília quando Ives Gandra da Silva Martins Filho, ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), entrou na confortável antessala de seu gabinete, por volta de 14h40, para uma entrevista com a reportagem da Revista Oeste. Instantes depois de arrumar o blazer azul-marinho, Gandra fechou lentamente a porta do espaço de recepção, com as paredes tomadas por inúmeros retratos com familiares e várias autoridades, entre elas, o papa Francisco, além de diplomas e outras honrarias. O local abriga também artigos religiosos e alguns livros que destoam do Direito, entre eles, a trilogia O Senhor dos Anéis (obra pela qual é apaixonado) em versão capa dura e os três volumes de O Teatro Completo, de Shakespeare, que ficam em uma mesinha de madeira próxima de um enorme retrato do renomado maestro João Carlos Martins, um de seus tios.

Durante os primeiros minutos da conversa, agora na ampla sala principal, repleta de móveis de madeira escura com vista para o Lago Paranoá, Gandra elogiou a reforma trabalhista, aprovada durante o governo Temer. “Além de simplificar as relações entre empregado e empregador, ela promoveu boas mudanças para o país, ao regulamentar novas modalidades contratuais e tecnológicas, especialmente o fenômeno da terceirização”, constatou Filho, que foi presidente do TST entre 2016 e 2018, enquanto ajeitava a gravata azul-claro quadriculada. “De qualquer forma, embora alterações significativas tenham sido realizadas em 2017, penso ser necessário se discutir uma reforma trabalhista 2.”

O ministro do TST comentou ainda a regulamentação do trabalho por aplicativo, em evidência atualmente, e também teceu críticas às engrenagens do Bolsa Família, por entender que elas prejudicam o mercado de trabalho. “O modelo do Bolsa Família precisaria ser repensado, para garantir o sustento daqueles que estão desempregados, mas não como renda vitalícia substitutiva do emprego”, defendeu.

A seguir, os principais trechos da entrevista exclusiva que o ministro concedeu.

No Brasil, 54 milhões de pessoas recebem o Bolsa Família. Como isso impacta o mercado de trabalho?

De maneira preocupante. Se, por um lado, o aspecto positivo da benesse é atenuar a situação da camada mais carente da população, por outro, seu recebimento continuado por anos tem gerado distorções. Em vários Estados, há carência de mão de obra, pois muitas pessoas não querem trabalhar, pelo menos com carteira assinada, por receio de perderem o benefício social. Um dos setores mais afetados é a indústria, que não consegue se expandir. Recentemente, em uma entrevista, o presidente da Federação das Indústrias de Minas Gerais reclamou do que chamou de “política populista”, que acomodou as pessoas a receberem a vantagem do Estado e não trabalharem. A mesma crítica ouvi do presidente da Federação das Indústrias de Mato Grosso do Sul, que tenta negociar com o governo federal uma forma de manter o Bolsa Família para o trabalhador, por um tempo, mesmo com a pessoa empregada formalmente, a fim de que ela se qualifique e, então, saia definitivamente do programa. Contava ele que, em seu Estado, a indústria de abate de bovinos e suínos poderia dobrar a produção, mas não encontra mão de obra, pois os potenciais empregados já estão satisfeitos com o que recebem de benefício social. No caso das empregadas domésticas, estas não aceitam a formalização do contrato, para não perderem a vantagem estatal. O modelo do “Bolsa Família” precisaria ser repensado, para garantir o sustento daqueles que estão desempregados, mas não como renda vitalícia substitutiva do emprego.

O presidente Michel Temer, durante pronunciamento no Palácio do Planalto | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi criada em 1943 e a reforma trabalhista veio para modernizá-la, em 2017. Passados oito anos da vigência das mudanças, qual a avaliação do senhor sobre elas?

Muito positiva. Além de simplificar as relações entre empregado e empregador, ela promoveu boas mudanças para o país, ao regulamentar novas modalidades contratuais e tecnológicas, especialmente o fenômeno da terceirização. Destaco, entre tantas, a regulamentação do teletrabalho. Sem ela, não teria sido possível manter inúmeros empregos durante a pandemia de covid-19, por exemplo, em virtude do isolamento social. O grande mérito da reforma foi prestigiar a negociação coletiva direta entre sindicatos e empresas, afastando o paternalismo estatal, quer seja do Legislativo, incapaz de legislar com rapidez e acerto em relação a tão dinâmicas atividades em tão diferentes setores produtivos, quer seja do Judiciário, pródigo na concessão de vantagens não previstas em lei e que tornam as relações de trabalho juridicamente inseguras e economicamente inviáveis em muitos segmentos. Outro elemento de impacto da reforma foi a extinção do caráter obrigatório da contribuição sindical, por alimentar, sem nenhum retorno efetivo para trabalhadores de muitas categorias, uma estrutura sindical de mais de 17 mil sindicatos, quando, no restante do mundo, os países que mais sindicatos têm não chegam a 200 sindicatos. Com isso, apenas os sindicatos realmente voltados à defesa dos trabalhadores, e não de suas receitas sindicais, sobreviverão. Nossa Suprema Corte, que havia considerado constitucional a reforma nesse aspecto, veio a rever sua posição, sinalizando para a volta de uma contribuição obrigatória de toda a categoria. De qualquer forma, embora alterações significativas tenham sido realizadas em 2017, penso ser necessário se discutir uma reforma trabalhista 2.

Como seria essa “reforma trabalhista 2.0”?

O ideal seria uma CLT apenas com os direitos mínimos comuns a todos os trabalhadores de qualquer categoria. Quanto aos direitos e às condições especiais de trabalho, próprios de cada categoria, estes seriam objeto de negociação coletiva entre os sindicatos e as empresas de cada setor produtivo ou seus sindicatos patronais. Com o fortalecimento dos sindicatos pelo serviço efetivo prestado aos trabalhadores, teríamos também, como tenho sugerido para uma reforma legislativa, a representação sindical, em dissídios individuais, apenas dos associados do sindicato, estimulando a filiação sindical e aumentando sua fonte de receita, mantendo-se, no entanto, a representação de toda a categoria nos dissídios coletivos, em que se discutem reajuste salarial e estabelecimento de novas condições de trabalho. Numa “Reforma 2”, incluiria o reforço às comissões de conciliação prévia, para desafogar a Justiça do Trabalho; a readequação da cota de deficientes e aprendizes, que hoje supera em muito aqueles que as poderiam preencher; deixaria mais claro a não incorporação ao contrato de trabalho de liberalidades concedidas pelo empregador em tempos de vacas gordas, podendo ser suprimidas em período de vacas magras; proporia, inclusive, a redução da carga horária semanal para 40 horas, mas acabando com as jornadas especiais mais reduzidas previstas em lei, remetendo à negociação coletiva tais jornadas.

“Outro elemento de impacto da reforma foi a extinção do caráter obrigatório da contribuição sindical, por alimentar, sem nenhum retorno efetivo para trabalhadores de muitas categorias, uma estrutura sindical de mais de 17 mil sindicatos”, diz Ives Gandra Martins Filho

Entraria nessa nova reforma a questão dos trabalhadores em plataformas digitais? O próprio governo quer regulamentar o trabalho por aplicativo. Como o senhor avalia essa proposta?

Se for para assegurar a esses trabalhadores direitos previdenciários, vejo com bons olhos. Mas, se for para reconhecer vínculo empregatício e enquadrá-los na CLT, penso ser negativa. Na 4ª Turma do TST, que presido, temos entendido não haver relação de emprego entre o motorista que utiliza a plataforma do Uber para obter clientes, uma vez que não há subordinação à empresa, mera intermediadora com seus clientes, podendo ativar-se quando quiser e recusar corridas. Mas, como contribuinte autônomo da previdência, deixa, muitas vezes, de recolher as contribuições. Seria o caso de estabelecer, por lei, que as empresas já fizessem esse recolhimento, garantindo aos trabalhadores previdência e assistência social. O que não se pode é impor o vínculo, não querido pela maioria dos que trabalham nessa modalidade, pela flexibilidade que têm com o modelo de trabalho autônomo.

Leia também: “Barroso: ‘No tema do enfrentamento à corrupção, minha posição não prevaleceu em diversas votações. Eu lamento'”, entrevista publicada na Edição 274 da Revista Oeste

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Fonte: https://revistaoeste.com/politica/ives-gandra-filho-penso-ser-necessario-se-discutir-uma-reforma-trabalhista-2/

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