Como funcionava a suposta ‘justiça paralela’ de Moraes no 8 de janeiro

Como funcionava a suposta ‘justiça paralela’ de Moraes no 8 de janeiro

Documentos publicados pelos jornalistas David Ágape e Eli Vieira nesta segunda-feira, 4, revelam o funcionamento de uma força-tarefa coordenada diretamente pelo ministro Alexandre de Moraes, que teria atuado de maneira paralela ao sistema judicial tradicional depois dos eventos de 8 de janeiro de 2023.

A operação combinava recursos do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para identificar, manter presos e processar manifestantes, com base em registros digitais, redes sociais e dados biométricos.

Como funcionava a força-tarefa de Moraes

A força-tarefa foi criada informalmente por meio de um grupo de WhatsApp denominado “Audiências de Custódia”. A coordenação ficou a cargo de Cristina Yukiko Kusahara, chefe de gabinete de Moraes no STF. Embora sem cargo formal no TSE, ela passou a dar ordens diretas aos funcionários do tribunal, como revelou uma fonte: “Ela basicamente dizia aos juízes o que fazer”.

Kusahara fornecia modelos de documentos, estabelecia prazos e decidia quais detidos deveriam permanecer presos. Segundo os registros, ela afirmava que “o objetivo era separar as ‘hipóteses’ — para determinar quem deveria permanecer na prisão e quem poderia ser libertado”.

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O processo de triagem era conduzido pela Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) do TSE, coordenada por Eduardo Tagliaferro. A equipe acessava bases de dados como o bCPF, o Registro Nacional de Condutores Habilitados e o sistema biométrico GestBio — este último, originalmente criado para evitar duplicidade no cadastro eleitoral.

Depois de encontrar uma foto recente do detido, os servidores vasculhavam redes sociais em busca de postagens classificadas como “antidemocráticas”. Segundo os documentos, conteúdos que levavam à classificação como “positivo” incluíam: seguir perfis de direita, usar as cores verde e amarela, criticar Lula ou o STF, ou simplesmente participar de grupos do gênero.

Força-tarefa elaborava “certidões”

As classificações geradas pela equipe — conhecidas como “certidões positivas” — não tinham valor legal formal. Mesmo assim, foram utilizadas como critério para manutenção da prisão dos detidos. Nenhuma certidão positiva foi compartilhada com a defesa, tampouco com o Ministério Público.

Entre os casos exemplificados, está o de Claudiomiro da Rosa Soares, caminhoneiro, que foi mantido preso por 11 meses por comentários feitos no Facebook, como: “Segundo o cabeça de ovo (Moraes), ninguém pode questionar nada?”.

Manifestantes invadem Congresso, STF e Palácio do Planalto | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Outro caso envolveu Ademir Domingos Pinto da Silva, ambulante, que não participou dos atos, mas foi detido por postagens feitas em 2018 que criticavam o Partido dos Trabalhadores e seus líderes.

A reportagem revela a simples existência de uma certidão positiva foi suficiente para impedir a liberdade dos envolvidos, ainda que não houvesse qualquer prova de ato violento. Mesmo entre os detidos classificados como “negativos”, 68% permaneceram presos.

Decisões eram centralizadas no gabinete de Moraes

As decisões sobre manutenção da prisão, segundo os documentos, estavam centralizadas no gabinete de Moraes. Em mensagem interna de fevereiro de 2023, Kusahara afirma: “A PGR pediu a LP [liberdade provisória] deles, mas o ministro não quer soltar sem antes a gente ver nas redes se tem alguma coisa”.

As audiências de custódia ocorreram com prazos irregulares, algumas até 22 dias depois da prisão, em desrespeito ao prazo de 24 horas previsto em lei. Os juízes responsáveis por essas audiências não tinham autonomia para conceder liberdade, apenas para verificar a legalidade formal da prisão.

eduardo tagliaferro - ex-assessor de alexandre de moraes no tse
Eduardo Tagliaferro é ex-assessor no TSE | Foto: Reprodução/X

O juiz Airton Vieira, assessor de Moraes que conduziu algumas dessas audiências, encerrou sua participação com uma mensagem de despedida no grupo de WhatsApp: “Que nas audiências de custódia possamos dar a cada um o que lhe é de direito: a prisão!”.

A força-tarefa contou com colaboração de agentes externos, como jornalistas, acadêmicos e instituições como a FGV e a UFRJ. Esses parceiros ajudaram na coleta de dados em grupos privados de WhatsApp e Telegram.

Juristas contestam legalidade da medida

Diversos especialistas apresentam possíveis ilegalidades no procedimento. O ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello afirmou: “Somente a polícia judiciária e o Ministério Público têm autoridade para investigar crimes”, disse. “Quando o TSE assume esse papel, ele ultrapassa sua jurisdição.”

Já o advogado Hugo Freitas declarou que o Judiciário é usado “para fins políticos”, o que “é inconstitucional”. Ele ainda afirma: “O Estado não pode assumir poderes além dos que a lei permite”.

O jurista André Marsiglia foi categórico: “O órgão responsável pelo julgamento não pode ser o mesmo que produz as provas”. Para ele, houve “usurpação inconstitucional das funções do Ministério Público”.

A documentação revela que a força-tarefa liderada por Moraes utilizou uma combinação de recursos do STF e do TSE para executar um processo de triagem informal com base em critérios políticos. O mecanismo se baseava na análise de redes sociais, na classificação de opiniões como prova de culpa e no uso de dados sensíveis fora de seu escopo legal.

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