Sapateiro e vizinhos do bairro de Flores, em Buenos Aires, relembram com carinho a simplicidade do papa, que manteve hábitos modestos até o fim. Francisco será sepultado no sábado (26). O legado do Papa Francisco: a história de Jorge Bergoglio na Argentina
O homem que se tornaria o papa Francisco sempre comprou seus sapatos na mesma loja pequena. E agora, o calçado notavelmente comum que surpreendeu e encantou milhões trouxe orgulho ao antigo bairro dele em Buenos Aires — e ao seu sapateiro.
Os simples sapatos pretos — um contraste marcante com os chamativos chinelos de rubi do antecessor de Francisco, o ex-papa Bento XVI — estão entre os pertences pessoais do papa que chamaram atenção. A morte dele, nesta semana, provoca uma onda de emoção ao redor do mundo.
Os aparentemente confortáveis mocassins são um poderoso lembrete da humildade, simplicidade e ausência de cerimônia de Francisco. Essas qualidades que o ajudaram a se conectar com pessoas comuns por onde passou.
AO VIVO: Acompanhe as últimas notícias sobre o funeral do papa
✅ Clique aqui para seguir o canal de notícias internacionais do g1 no WhatsApp
Um sapateiro de terceira geração
Uma fotografia do papa Francisco é exibida na vitrine da loja de sapatos Muglia, ao lado do modelo que Jorge Bergoglio costumava usar no bairro de Flores, onde cresceu, em Buenos Aires
AP/Natacha Pisarenko
Os homens da família Muglia foram os primeiros sapateiros do bairro de classe média Flores, na zona oeste de Buenos Aires. A loja deles, Muglia Mocasines, foi inaugurada em 1945, apenas alguns anos depois de Jorge Mario Bergoglio — o futuro papa Francisco — nascer.
Não havia muita concorrência. Então, quando o jovem Bergoglio entrou na loja para comprar sapatos, foi o avô de Juan José Muglia quem vendeu o primeiro par para ele. O futuro papa tinha cerca de 20 anos na época, atuando como padre jesuíta na Basílica de San José de Flores, logo na esquina.
“Meu pai, meu avô, eles me contavam histórias de como o Padre Jorge vinha da igreja ali na esquina para comprar esses sapatos, eram os que ele gostava, ele usava o tempo todo”, contou Muglia, de 52 anos.
“Eles são simples, é o tipo de sapato que garçons gostam de usar hoje em dia”, disse Muglia, segurando um par dos mocassins feitos à mão com cadarço. “Podem durar anos e anos.”
Quando assumiu o negócio após a morte do pai, Muglia acrescentou um pôster de Elvis Presley, uma moto Harley Davidson e uma vitrola para dar um toque mais moderno ao lugar.
Um tempo que passou
Juan José Muglia mostra o modelo de sapato, à direita, que Jorge Bergoglio costumava usar na loja Muglia, no bairro de Flores
AP/Natacha Pisarenko
As prateleiras agora exibem modelos mais novos, como sapatos de bico fino estilo náutico e números brilhantes de verniz colorido.
Mas grande parte da loja continua a mesma, incluindo as paredes revestidas de madeira de pinho, as prateleiras até o teto com caixas de sapatos cor creme e, claro, os mocassins pretos de couro com sola antiderrapante que Francisco comprava repetidamente — e que inspiraram padres católicos locais a fazer o mesmo.
“Padres vieram aqui de todas as basílicas da cidade, alguns padres jovens vieram até de Roma para comprá-los”, disse Muglia.
Hoje, eles custam cerca de US$ 170 (R$ 965) — bem mais do que o preço que Francisco pagava — por causa da inflação descontrolada na Argentina.
Quando Francisco se tornou papa em 2013, Muglia disse que se ofereceu para enviar ao pontífice um novo par de seus sapatos favoritos, para a viagem ao Vaticano. Mas ele lembra que Francisco respondeu dizendo que seus pés haviam inchado com a idade e que precisava de um ajuste mais personalizado em Roma.
Calçado papal
Um par de sapatos como os que Jorge Bergoglio costumava usar é exibido na loja Muglia, no bairro de Flores, onde o papa Francisco cresceu, em Buenos Aires, Argentina
AP/Natacha Pisarenko
Em vez de adotar os sapatos típicos do papa — de veludo ou seda vermelha —, Francisco não se afastou de suas raízes em Flores.
Ele escolheu sapatos pretos normais, com sola ortopédica — bem diferente da era bizantina, quando peregrinos beijavam uma cruz decorativa bordada no sapato do papa.
O exemplo de Francisco também destoa do tempo do papa Bento XVI, cujos sapatos de couro vermelho-vivo feitos sob medida levaram a revista Esquire a nomeá-lo “Acessório do Ano” em 2007, gerando intensas especulações sobre a marca do designer.
Com o passar dos anos, fora os ocasionais padres ou fiéis que passavam na Muglia, poucos se perguntavam sobre a marca do calçado simples de Francisco.
Mas isso mudou quando Francisco morreu na segunda-feira (21), aos 88 anos, provocando uma onda de interesse por suas origens em Flores.
Ao redor do mundo, ele foi lembrado por reduzir o luxo herdado do papado para torná-lo mais acessível — trocando a capa de veludo com bordas de pele usada pelos papas desde a Renascença por uma simples batina branca, e preferindo um Ford Focus à limusine papal habitual.
À medida que se espalhava a notícia sobre seus sapatos originais e jornalistas locais lotavam o bairro, Muglia contou que clientes curiosos o bombardearam com pedidos. Ele colocou um retrato emoldurado de Francisco em destaque na vitrine.
“Era um mundo de gente”, disse Muglia. “Vieram de todo lugar.”
Um bairro que lembra
A Basílica de San José de Flores, onde o futuro papa Francisco, então Jorge Bergoglio, sentiu o chamado para se tornar padre aos 17 anos, no bairro de Flores
AP/Natacha Pisarenko
Em Flores, o luto por Francisco é pessoal. Os moradores o lembram como alguém que vivia com simplicidade, visitava e defendia os mais pobres da cidade, e que muitas vezes era visto compartilhando a tradicional bebida argentina, o chimarrão, com velhos amigos e desconhecidos.
Na banca de jornal logo abaixo da loja Muglia, o jornaleiro Antonio Plastina, de 69 anos, lembrou como ele e Francisco conversavam “como dois argentinos, um pouco de tudo, política misturada com futebol.”
“Ele era uma pessoa maravilhosa, são lembranças bonitas”, disse Plastina, com os olhos marejados. Depois de se tornar arcebispo e cardeal, Francisco ainda fazia o trajeto de meia hora até Flores, vindo do centro de Buenos Aires, todos os domingos antes da missa.
Ele sempre comprava os dois principais jornais argentinos, contou Plastina, e lia as notícias com uma xícara de café em uma cafeteria tranquila do outro lado da rua — hoje uma loja de colchões em uma esquina congestionada de carros.
Embora o movimento em Flores tenha diminuído até a quinta-feira (24), após a notícia da morte de Francisco, moradores deixaram buquês e bilhetes escritos à mão nas janelas gradeadas do número 531 da rua Membrillar — a casa modesta onde ele cresceu como o mais velho de cinco irmãos.
“Minha visão está indo embora, mas minha memória é longa”, disse Alicia Gigante, de 91 anos, vizinha e amiga da família de Francisco.
“Vou me lembrar dele por muito tempo, sempre a gentileza dele, o sorriso, e aquele cumprimento, quando você tocava a campainha e ele saía para a rua”, disse ela, com a voz trêmula. “Lá estava ele, sempre o mesmo, ele te acariciava e te abençoava.”
VÍDEOS: mais assistidos do g1
Fonte: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/04/25/do-bairro-ao-vaticano-como-os-sapatos-simples-do-papa-francisco-enchem-os-argentinos-de-orgulho.ghtml