O Ministério Público Federal decidiu empregar o aparato estatal para processar um comediante. Por sua vez, o Poder Judiciário condenou a oito anos e três meses de prisão o humorista Léo Lins por ter feito piadas consideradas discriminatórias contra diferentes grupos sociais em um show. Isso revela, mais do que uma inversão de prioridades, um projeto de domesticação da linguagem e intimidação do pensamento dissidente. É a institucionalização do medo travestida de justiça.
Não se trata aqui de avaliar o gosto da piada — o gosto é irrelevante perante o Direito. O que está em jogo é a tentativa crescente de controle estatal e cultural sobre a linguagem e, mais profundamente, sobre o pensamento. Afinal, o riso sempre incomodou o poder.
O que a civilização ocidental, fundada no valor da liberdade individual, considerava liberdade artística, está sendo interpretado como violência simbólica, discurso de ódio ou agressão moral. A consequência disso é o silenciamento progressivo de um dos instrumentos mais refinados de crítica social: o humor.
Nossa capacidade de fazer piadas está intimamente conectada com a liberdade de pensamento. O humorista, tal como o bobo medieval, é aquele que diz o que ninguém ousa, que aponta o absurdo no poder, que revela que o rei está nu. Onde não há espaço para a sátira, não há espaço para a dissidência — e, onde não há dissidência, não há liberdade.
Humoristas são como canários em uma mina de carvão. Durante as explorações de minas, era comum que essas aves fossem levadas para detectar a presença de gases tóxicos. Quando o canto do canário cessava, era sinal de que o ar havia se tornado irrespirável. Da mesma forma, quando humoristas são silenciados, perseguidos ou forçados ao conformismo, é sinal de que o ambiente da liberdade se tornou tóxico. O riso morre antes da razão — e, quando ele desaparece, o sufocamento do pensamento já está em curso.
Os algozes da liberdade
A história soviética nos oferece um exemplo brutal dessa lógica. Sob o regime de Stálin, fazer piadas sobre o governo podia — e com frequência levava — à prisão, à tortura ou mesmo à morte. Arquivos do NKVD revelam condenações formais por “propaganda antissoviética” motivadas por piadas contadas em contextos privados. O humor, mesmo sussurrado, era tratado como ameaça direta ao regime. A piada, ali, tornava-se crime político. Regimes totalitários temem menos as armas do que temem ideias.
O inimigo da liberdade de expressão hoje não se apresenta com botas nem tanques. Ele veste o manto “do bem”. Fala em “inclusão”, “respeito” e “empatia”, mas, por trás do vocabulário virtuoso, há um projeto claro de controle da linguagem, da moral e do pensamento.
O pós-modernismo forneceu os fundamentos filosóficos dessa corrosão. Ao rejeitar verdades objetivas e desconfiar de qualquer conceito universal, instaurou a tirania das subjetividades. Tudo é discurso. Tudo é construção social. Se tudo é construção, tudo pode ser reconstruído por aqueles que controlam os símbolos e as narrativas. A linguagem, nesse novo paradigma, deixa de ser uma ponte entre consciências e um instrumento para descrição precisa da realidade e se transmuta em veículo de dominação. Falar torna-se arriscado. Pensar, perigoso.
+ Leia notícias de Política Oeste
É nesse caldo ideológico que o movimento woke, irmão anabolizado do politicamente correto, sob o pretexto de justiça social e reparação histórica, assume o controle moral das instituições, da cultura, da arte, da educação — e do humor. A vigilância ideológica se instala. A gramática vira campo minado. Palavras, expressões, até silêncios, passam a ser monitorados e punidos. O dissenso vira crime simbólico. O humor, um risco político.
Hoje, não basta não ofender deliberadamente — é preciso evitar qualquer coisa que possa ser interpretada subjetivamente como ofensiva por alguém, em algum lugar, em alguma camada identitária. A linguagem vira campo de guerra. A verdade torna-se secundária diante da ofensa potencial.
Nesse contexto, fazer uma piada, emitir uma opinião ou mesmo expressar dúvida se tornou perigoso. A autocensura se normalizou. Professores, artistas, jornalistas e até juristas falam com medo. A ideia de que a liberdade de expressão é um valor absoluto foi relativizada por categorias fluidas como “segurança emocional”, “ambiente de respeito” e “valores democráticos”. O que deveria ser um debate de ideias transformou-se em uma disputa por moralismo punitivo.
O que é a liberdade
A mitologia nos oferece uma imagem poderosa da subversão necessária: o deus nórdico Loki, trapaceiro e irreverente, é o arquétipo do riso que desestabiliza. Ele engana os deuses, desafia as regras e expõe o ridículo por trás da ordem aparente. Loki não é herói — mas é necessário. Sua função simbólica é clara: desmascarar as estruturas de poder que se julgam invulneráveis. Loki, como o humorista, não serve à harmonia — mas à revelação. Sem revelação, só há ilusão.
Václav Havel, dramaturgo e dissidente do regime comunista da antiga Tchecoslováquia, sabia que o humor era uma forma de resistência mais eficaz do que panfletos. O riso não exige mobilização — apenas consciência. Quando tudo está capturado, o riso se torna a linguagem da verdade sufocada. Peterson reforça isso ao afirmar que “o silêncio, quando há algo a dizer, é uma forma de mentira — e as tiranias se alimentam de mentiras”.
Defender a liberdade de expressão, portanto, é defender a liberdade de rir, de incomodar, de perturbar e até mesmo de ofender. Uma sociedade verdadeiramente livre é aquela onde até a piada que você detesta tem o direito de existir. Quando se abre exceção para censurar o que é “ofensivo”, inevitavelmente se acabará censurando o que é verdadeiro.
A liberdade de expressão está morrendo em nome do monopólio da virtude. Estão assassinando o riso com discursos de empatia. Estão amordaçando a linguagem com o pretexto do cuidado. Mas, sem o riso, sem o risco, sem o confronto, o que nos resta é uma democracia de papel — limpinha, “progressista”, inofensiva e absolutamente impotente contra a tirania sorridente do conformismo moral, porque, onde o humor vive, a liberdade ainda respira. E, quando o riso é silenciado, o que vem depois raramente é bom.
Leia também: “Regular e coçar é só começar”, leia a coluna de Guilherme Fiuza na Edição 272 da Revista Oeste
João Paulo Seixas é advogado e consultor político, mestre em Direito, autor do livro Poder e Federalismo no Brasil e nos EUA e articulista do Instituto Liberal
O post O silêncio do riso e o declínio da liberdade apareceu primeiro em Revista Oeste.